Viver do sonho e para o sonho, desmanchando o Universo e recompondo-o,
distraidamente conforme mais apraza ao nosso momento de sonhar. Fazer
isto consciente, muito conscientemente, da inutilidade e de
o fazer. Ignorar a vida com todo o corpo, perder-se da realidade com
todos os sentidos, abdicar do amor com toda a alma. Encher de areia vã
os cântaros da nossa ida à fonte e despejá-los para os tornar a encher e
despejar, futilissimamente. Tecer grinaldas para, logo que acabadas, as
desmanchar totalmente e minuciosamente. Pegar em tintas e misturá-las
na paleta sem tela ante nós onde pintar. Mandar vir pedra para burilar
sem ter buril nem ser escultor. Fazer de tudo um absurdo e requintar
para fúteis todas as nossas estéreis horas. Jogar às escondidas com a
nossa consciência de viver. Ouvir as horas dizer-nos que existimos com
um sorriso deliciado e incrédulo. Ver o Tempo pintar o mundo e achar o
quadro não só falso mas vão. Pensar em frases que se contradigam,
falando alto em sons que não são sons e cores que não são cores. Dizer –
e compreendê-lo, o que aliás é impossível – que temos consciência de
não ter consciência, e que não somos o que somos. Explicar tudo isto por
um sentido oculto e paradoxo que as coisas tenham no seu aspecto
outro-lado e divino, e não acreditar demasiado na explicação para que
não hajamos de a abandonar. Esculpir em silêncio nulo todos os nossos
sonhos de falar. Estagnar em torpor todos os nossos pensamentos de
acção. E sobre tudo isto, como um céu uno e azul, o horror de viver
paira alheadamente.
Fernando Pessoa
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