domingo, 21 de outubro de 2012

Em última análise, não me parecia mais tão grave ficar cego ao lado de Vanda para o resto da vida. Iria com ela à praia, ao hospital, à biblioteca, ao restaurante, a Londres, atrás da sua voz iria de bom grado a qualquer parte. Desembaraçado da visão, com maior tino perceberia se ela estava alegre, se estava mentindo, se tinha dó de mim, se cochichava ao telefone, se sentia vergonha de ter marido cego. E ela me leria cada noite um novo livro, e me cobriria as pálpebras com umas compressas que só me serviriam para gostar ainda mais dela. Às vezes as compressas estariam fervendo, ou embebidas em limão; às vezes a Vanda resolveria passar vários dias muda, para me ver andando às tontas; às vezes leria do livro só as páginas pares, mas eu jamais reclamaria de coisa alguma, nem de ela estar envelhecendo, adquirindo como que rugas na voz. Eu fingiria não notar que de quando em quando ela chorava pelos cantos, ora por ter ficado velha, ora por ter desperdiçado a vida a guiar um parasita.
Chico Buarque

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